Universidades brasileiras: ruptura de acordos institucionais com Israel

Alberto Handfas, março de 2024

A Rede Universitária de Solidariedade ao Povo Palestino chama a comunidade acadêmico-universitária brasileira a se juntar à campanha internacional de boicote a instituições públicas e privadas israelenses. Esta campanha é um instrumento importante na luta contra o regime apartheid que oprime o povo palestino. Iniciativas junto aos órgãos colegiados (Congregações, Conselhos Universitários) podem ser tomadas no sentido de aprovar resoluções que levem à descontinuidade de contratos, acordos de cooperação ou convênios com instituições, acadêmico-científicas ou não, israelenses. Abaixo apresentamos alguns argumentos importantes para contribuir no debate necessário para levar adiante tal campanha.

O que é BDS?

“BDS” (Boicote, Desinvestimentos e Sanções) é um movimento impulsionado pelos palestinos e diversas organizações de solidariedade à sua luta por autodeterminação nacional, justiça e igualdade. Israel está ocupando e colonizando terras palestinas, impondo uma brutal ocupação militar sobre mais de cinco milhões de palestinos que ali vivem. Uma ocupação que nega qualquer direito à cidadania, a liberdades individuais, democráticas, de propriedade e de ir e vir a tal população, expulsando-as de suas terras ancestrais e forçando-as a viver em bantustões na Cisjordânia ou no verdadeiro campo de concentração em que Gaza foi transformado. Gaza, aliás, que em apenas em cinco meses (outubro/2023 a março/2024), mais de 40 mil pessoas – mulheres e crianças na sua imensa maioria – foram assassinadas pelas bombas e balas israelenses, que destruíram (fisicamente, inclusive) também todas as universidades lá existentes.

Por que boicotar Israel?

Tais políticas apartheid e de limpeza étnica – agora (2023/24) incrementadas com um ataque genocida a Gaza – é totalmente ilegal pelo próprio direito internacional, constituindo-se em graves crimes contra a humanidade. E, a despeito disso, Israel, seus governantes e suas autoridades estatais nunca são punidos, já que – sendo um enclave imperialista na região estratégica do Oriente Médio a serviço das grandes potências – eles são protegidos diplomática e militarmente pelos EUA, UE e demais governos a eles subordinados, incluindo os de vários países árabes. O fim da opressão e injustiça brutal, que perdura por quase um século, as quais o povo palestino está submetido pressupõe o fim do regime apartheid israelense. Assim, as metas do boicote são resumidamente: o fim da ocupação das terras palestinas, o fim da discriminação e segregação (legal) imposto aos palestinos e os direitos (ao retorno/compensações) aos palestinos expulsos.

Como se dá o boicote?

Inspirado no vitorioso movimento de boicote à África do Sul nos anos 1970/80/90, o BDS é um instrumento de luta não-violenta, mas efetiva, na batalha para desmantelar estrutural e institucionalmente o regime Apartheid israelense por intermédio de crescente pressão sobre as autoridades internacionais e mesmo israelenses. Como o nome sugere, ele visa não apenas chamar as pessoas em diversos países do mundo a boicotar o consumo de produtos de empresas israelenses, mas também e sobretudo exigir que governos, instituições e empresas de países do mundo inteiro rompam relações/contratos/acordos com empresas, instituições e governo israelenses.

Israel e o militarismo

Israel tem se transformado cada vez mais nas últimas décadas em uma máquina de guerra (ultra militarizada e armada) – algo quase que sui-generis no mundo de hoje. Trata-se praticamente de uma força armada com um país em anexo e não o contrário. A sociedade israelense é altamente militarizada, doutrinada e inculcada com os dogmas e  a ideologia colonialista (a despeito de haver vários israelenses que corajosamente se rebelam contra o regime). Praticamente todas as instituições de estado e as grandes organizações privadas, públicas e sociais (mídia, culturais, educacionais etc) do país estão, de uma forma ou de outra, relacionadas e submetidas ao ultra abrangente complexo militar-industrial israelense e a seus objetivos estratégicos. A indústria bélica emprega diretamente 20% da força de trabalho industrial do país – isso para não falar do enorme setor de empresas que produzem “serviços de segurança” e outros derivados. O grosso das exportações de bens e serviços do país estão direta ou indiretamente relacionados a produtos de armamentos/segurança e de tecnologia correlata. O serviço militar é obrigatório (2 anos a mulheres, 3 a homens – estes obrigados ainda a manter períodos anuais de serviço reservista por décadas), tornando boa parte da população conectada direta ou indiretamente à caserna. Oficiais de elite, ao saírem ou aposentarem-se do serviço militar (onde foram treinados por anos), tornam-se profissionais ultra qualificados ou mesmo executivos de grandes empresas do ramo bélico-segurança. Outros viram sócios de “start-ups” de serviços de tecnologia e informática relacionados.

Complexo industrial-militar-segurança

As armas, munições (mísseis etc), tecnologia (softwares e hardware de vigilância, rastreamento por satélite) e serviços (espionagem, inteligência, modelos de segurança urbana e de contra-insurgência etc) produzidas por tal complexo são testadas literalmente na prática e in-loco em Gaza e na Cisjordânia. A população palestina serve de cobaia humana em tais laboratórios infernais. Esse é um dos motivos que Israel é viciado em guerras: há décadas que o establishment do país é impelido compulsivamente a iniciar algum conflito a cada dois ou três anos. Usam de qualquer pretexto para iniciar alguma “operação aparador de gramas” (nome dado pela comunidade militar israelense às seguidas operações contra Gaza das últimas duas décadas) em que alguns milhares de palestinos são assassinados, outras dezenas de milhares são feridos e têm destruídas suas residências, escolas etc. Os novos armamentos e tecnologias usadas em cada uma dessas operação recebe o carimbo “testado em guerra”. E com ele são vendidas a um sobre-preço no multibilionário mercado internacional de armas e tecnologias correlatas.

Relações internacionais instrumentais ao imperialismo

Esse rico setor econômico israelense funciona em cooperação e profunda conexão estrutural com os complexos militar-industriais das grandes potências internacionais, particularmente o norte-americano (que é, aliás, um dos grandes patrocinadores do chamado lobby pró-Israel nos EUA). A diplomacia e serviços secretos, de inteligência e comerciais israelenses, que também trabalham em íntima cooperação com seus pares dos EUA, desenvolvem uma intensa atividade não apenas de venda de armamentos mas de relações com dirigentes políticos, judiciais, militares, policiais e governamentais em diversos países mundo afora – particularmente com lideranças autoritárias. O Brasil é um exemplo: uma intensa aquisição de armamentos e tecnologias fornecidos por Israel tem sido realizada pelas forças armadas e policiais brasileiras nas últimas décadas – com destaque para o período Bolsonaro. Operações por tais forças brasileiras realizadas no complexo do Alemão e na Maré no Rio, para ficar apenas em dois exemplos, tiveram a direta participação em treinamento e em equipamentos de empresas israelenses (e, não por acaso, é nesse meio também que foram se desenvolvendo relações políticas do bolsonarismo com o governo israelense).

Boicotar Universidades?

Mas afinal, o espaço universitário e de pesquisa científica não é neutro? Não deveria ser poupado de boicotes? O militarismo-belicismo israelense, como dito acima, determina o funcionamento de praticamente todas as grandes instituições do país, incluindo aí – e com destaque – as universidades e centros de pesquisa. Há tempos as universidades israelenses tem servido de espaço para o desenvolvimento técnico e teórico das políticas de ocupação e apartheid – desde seu planejamento até sua implementação, passando pela construção de “narrativas” que as justifiquem. Ademais, as instituições universitárias mantêm inúmeros programas de cooperação com as forças armadas israelenses.

Por exemplo, o instituto Technion desenvolve drones armados e tratores de demolição por controle remoto. A Universidade de Tel Aviv – a partir de projeto multidisciplinar/departamental – foi responsável pela construção da “doutrina Dyahiya”: uso de força desproporcionalmente brutal em áreas urbanas de grande concentração – implementado, inclusive, no atual massacre a Gaza. A universidade Ben Gurion, além de operar o roubo de fontes de água de vilarejos palestinos, é cúmplice em diversas violações de direitos humanos (motivo pelo qual teve relações rompidas, já em 2011, com a Universidade de Johannesbrug). Várias universidades participam de projetos utilizados na colonização dos territórios de Gaza e Cisjordânia (desde o muro e cercas, passando pelas estradas exclusivas e checkpoints etc). Quase todas as universidades do país têm praticado cada vez mais, em maior ou menor grau de escancaramento, vários tipos de censura ou discriminação contra críticos do regime israelense, particularmente a acadêmicos de origem árabe-palestina, mas também a judeus-israelenses tidos como “radicais”.

Boicote é a acadêmicos individualmente? Não é discriminação/antissemitismo?

Não e não. O objetivo do BDS não é prejudicar cientistas ou intelectuais israelenses pessoalmente. Sobretudo se ela(e) (e sua pesquisa) for não-cúmplice do regime apartheid israelense, o BDS não se opõe (muito pelo contrário) a realizarmos cooperação acadêmica, convites a eventos (seminários, conferências/congressos, debates) no nível individual (não-institucional).

O BDS é contra qualquer forma de preconceito ideológico, científico, religioso ou étnico-racial. O BDS é contra o antissemitismo tanto quanto o anti-islamismo e considera ambos dois lados da mesma moeda. Ainda que o governo e as instituições de Estado israelenses (apoiados por seus poderosos aliados internacionais – governos e elites dos EUA, mídia etc) se esforcem em falar em nome do povo judeu, críticas ao regime apartheid de Israel nada tem a ver com antissemitismo (da mesma forma que criticar o regime militar pós 1964 do Brasil nada tinha de “anti-brasileirismo”). Muito pelo contrário, sempre houve consideráveis contingentes de judeus críticos ao Estado de Israel (e a sua ideologia estatal, o sionismo) – de Einstein, a Freud; passando por Isaac Azimov, Hanna Arendt, Primo Levy, Noam Chomsky, entre tantos outros – incluindo o crescente número de jovens judeus que têm engrossado as atuais manifestações mundo afora pelo cessar-fogo em Gaza em solidariedade aos palestinos. Incluindo vários dos participantes desta Rede Universitária.

Exemplos de BDS em Universidades

O chamado de solidariedade ao povo palestino tem sido respondido na forma da Campanha Palestina pelo Boicote Acadêmico e Cultural a Israel por parte da comunidade acadêmica de universidades de vários países – e isso, a despeito de toda a pressão midiática, governamental e legal-jurídica contrária ao BDS exercida pelas elites apoiadoras do regime israelense. Nos EUA, algumas importantes associações científicas – como a American Anthropological Association, the American Studies Association, the Middle East Studies Association, and the Native American/Indigenous Studies Association – têm adotado resoluções BDS nos últimos anos – além de departamentos e entidades estudantis. O Sindicato Nacional dos Professores irlandeses, a Sociedade britânica para Estudos de Oriente Médio e a União Nacional dos Estudantes do Reino Unido engajaram-se na luta para organizar boicotes em suas universidades.

No Brasil, no início de 2024, o Conselho Universitário da Universidade Federal do Ceará aprovou a ruptura de contratos com instituições israelenses. Exemplos com estes podem ser multiplicados. O primeiro passo é abrir o debate democrático junto a nossas comunidades universitárias.

Acesse o site do BDS Movement e saiba mais.

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